Flanador

Jornalismo e literatura: fronteiras poéticas

Flanadô de fulô

Este Blog deveria se chamar flâneur, em alusão a Charles Baudelaire e Walter Benjamin. Perdemos o nome. Tentamos flanando. Gerúndio vetado pelo uso. Também já existia um com esta denominação. Entre tantas derivações do termo que diz de um olhar que vagabundeia atento, olhar de errâncias, itinerante, ficamos com flanador. Flanador com o -dor que compõe noções ligadas a ofício ou profissão. Ou aquele, diz o Aurélio do sufixo, que “pratica determinada ação (definida pelo rad. verbal), agente, instrumento de ação”. Flanador como carregador, trabalhador, apreciador. Mas flanador que quase cheira a neologismo, a invencionice. Radical -dor tão caro aos artífices da linguagem. Gênios da língua, alquimistas do verbo, poetas de espaços e Campos: circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te guie porque eu não posso guiá eviva quem já me deu e ainda quem falta me dá… E viva Flanador! (com a dúvida se não seria melhor perambulador…).
E já que é flanador, justifiquemos. Não é disso que vive a Academia, de justificativas para o que não passa de hasard, já que um acaso cibernético nos forçou à fórmula flanador? Voltemos aos sufixos: nesses tempos de pós-modernidade, pós-isso e aquilo e até de hiper, tempos de inconclusões, de emendas, poéticas do fragmentário, quando tentamos juntar os cacos de tantas descontruções, tantos descentramentos, tantos desconfortos, desarticulações, tantos dês, nosso araldite soa quase como um manifesto de consolação. Não temos o flâneur no nome. Melhor assim. Diz Willi Bolle que o flâneur autêntico não existe mais. Esta personagem mítica que se forma da condição ociosa do aristocrata com o olhar deambulatório indispensável à descoberta do novo (indispensável ao jornalismo!), sobrevive somente em “metamorfoses degradadas”. O flâneur francês poderia ser um flanador? Voltando a Benjamin, também a Haroldo de Campos ou visitando Guimarães Rosa, sabemos que a tradução não é possível.
Não, o flanador, nosso flanador, não é um flâneur. Não apenas por que o contexto urbano da Paris de Haussmann criticada por Baudelaire não é o nosso – como não é o nosso o Rio de Janeiro de Pereira Passos e de João do Rio. Somos uma comunidade que experiencia novas formas de sociabilidade. Flanadores de blog, de orkuts, navegadores de sites da Capes, do CNPq, angustiados com Qualis, com portcom, com revcom, com Intercom, e com tantos .com. Mas felizes pelos encontros notívagos, solitários, com outros flanadores de redes, até o tédio bater ou até o fantasma da L.E.R. nos visitar.
Mas não só da flânerie vive a condição moderna da virada do XIX para o XX. Benjamin, o homem do vento (luftmensch), que só se sentia em casa em pensões baratas, locações temporárias que serviam de abrigo para um pensamento também errante, chama atenção para a prostituta, vendedora e mercadoria – aquela que, se a um tempo encarna um eros arquetípico, é também emblema da polêmica marxista da servidão utilitária – e o trapeiro, que recolhe o que a cidade jogou fora. E aí fica a pergunta: será que o jornalista encarnaria destes três tipos apenas as características do flâneur?
E se o final do século passado é da flânerie ocupada com a crítica da modernização das cidades, se dos anos 10 a 30 as vanguardas dadaístas e surrealistas (Aragon, Breton, Picabia, Tzara) excursionavam pelos lugares banais guiados pelas idéias de Hasard Objectif, e nos 50 e 60 o pós-guerra era o mote para a crítica radical ao urbanismo, o que temos hoje como olhar nômade sobre a cidade? Nosso vagabundear ocioso pela urbe, pelos apelos do mundo e do homem, é de uma ordem de errância de bites e pixels.
Cidade – o que se configura como um dos temas deste projeto com a série de perfis que estamos em processo de produção. Há outros, sobre a biografia, como está sendo pesquisado com Persépolis, da iraniana Marjane Satrapi. Quadrinhos, literatura, reportagem que encontram em Joe Sacco sua tradução. E nesta série de híbridos, de filhos da relação promíscua entre jornalismo e literatura, o olhar do fotógrafo Tiago Santana pautado pela literatura imagética de Graciliano. Projetos ainda todos embrionários, como o que mostra uma Raquel de Queiroz cronista, orientada por um tempo memorial. Estes projetos podem ser conferidos no item homônimo.
Mais do que divulgar nossos trabalhos, o nosso intuito é de partilha. Com este blog, pretendemos esticar a rede, disponibilizar nossas precárias descobertas. Flanadô de fulô por que eu não posso guiá.

Gabriela Reinaldo, coordenadora do projeto de pesquisa Jornalismo e Literatura da Universidade de Fortaleza.